“Foi nesse ambiente que Vitória cresceu. Um ambiente em que as dificuldades eram vencidas com muita luta”. O ambiente a que se refere o jornalista carioca Fábio Gusmão, no livro “Dona Vitória Joana da Paz” (editora Planeta), é a Alagoas da primeira metade do século passado, mais precisamente Quebrangulo, a 120 km de Maceió. Foi lá que nasceu Joana Zeferino da Paz (1926 – 2023).
A alagoana de Quebrangulo foi interpretada pela atriz Fernanda Montenegro em “Vitória”. O longa chegou aos cinemas no dia 13 – a maior estreia de um filme nacional até aqui, em 2025. Dirigida por Andrucha Waddington, a película é inspirada no livro escrito por Fábio Gusmão, lançado originalmente em 2006 e relançado agora, trazendo detalhes exclusivos como a revelação da identidade da alagoana que desafiou o crime organizado no Rio de Janeiro.
Aos 80 anos e com uma câmera comprada em 12 prestações, ela filmou, da janela de seu apartamento, a movimentação do tráfico de drogas e a negligência policial na Ladeira dos Tabajaras, no badalado bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. As denúncias resultaram na prisão de mais de 30 pessoas, incluindo dois policiais, e foram reveladas em reportagem assinada por Fábio Gusmão, publicada no jornal Extra.
Em entrevista exclusiva ao Alagoas Notícia Boa (ALNB), Fábio Gusmão falou sobre o filme, os desafios jornalísticos para escrever a reportagem, o livro e as raízes alagoanas de dona Joana.
Foi no município alagoano de Quebrangulo onde, aos 15 anos, Joana deu à luz uma menina, fruto de um estupro praticado por um fazendeiro local, que seria denunciado por ela e pela mãe, identificada no livro como Rosália.
“Amanhã bem cedo, nós vamos à delegacia em Quebrangulo. Lugar de bandido é na cadeia”, disse Rosália à filha, ao saber do crime, revela o livro. Começava ali a busca por justiça.
“De fato isso fica muito forte na construção de quem ela era, de caráter, de busca por justiça. Uma coisa que vinha ali de uma mulher também muito forte, que era a mãe dela”, diz o jornalista ao ALNB.
Confira a entrevista:
Em que município alagoano nasceu dona Joana?
Quebrangulo.
O livro revela uma infância e uma adolescência muito difíceis vividas em Alagoas por dona Joana. Como ela se referia à terra natal?
Ela conheceu a capital em circunstâncias muito difíceis. Mas a cidade dela, dizia que era muito pobre, muito pequena, que não tinha muitas condições. Depois disso, ela sai (Joana é tirada de Quebrangulo e levada a Maceió pelo fazendeiro para evitar um “escândalo” por causa da gravidez). Após sofrer uma violência, era uma segunda violência ela ser retirada à força dali. Depois ela volta ainda grávida e vai ter a filha na cidade natal (Joana regressou a pé, percorrendo cerca de 120 km, entre Maceió e Quebrangulo). E a filha morre. Depois disso, ela passa alguns anos e vem para o Rio de Janeiro. Ela retorna, sim, a Alagoas para rever a mãe, algumas vezes. Na verdade, bem poucas.
Você acredita que todo um passado de violências e de privações vivido em Alagoas acabou por moldar o caráter contestador e resiliente de dona Joana?
De fato, quando a gente a olha isoladamente, você tem uma impressão sobre a coragem dela. Mas quando você escuta toda a história de vida dela, que contava com muita dificuldade, ela não gostava nem de se emocionar na minha frente. E eram justamente os momentos em que ela interrompia. E não era bem uma entrevista, mais uma conversa. Até ter uma entrevista oficial mesmo, eu levei mais de um ano. A parte que ela conta da violência, eu levo mais de dois dias para escutar a história completamente. E sobre isso tudo ter moldado, quando ela sofre essa violência e retorna para casa ainda grávida, e a mãe a acolhe e a leva até a polícia para denunciar, de fato isso fica muito forte na construção de quem ela era, de caráter, de busca por justiça. Uma coisa que vinha ali de uma mulher também muito forte, que era a mãe dela. Então isso a moldou e todas as dificuldades também, de formar uma vida sozinha no Rio de Janeiro, trabalhando como empregada doméstica – um dos primeiros trabalhos dela – até conseguir aprender a massagem e depois conquistar um diploma de massoterapeuta. Você imagina o quanto ela sofreu: uma mulher sozinha no Rio de Janeiro, na década de 60. Então tudo isso forjou quem ela era, naquela coragem e força.
Por que no filme a personagem diz que “minha gente” é de Minas Gerais e não de Alagoas, ao se referir às origens dela?
Ela ser de Minas foi uma referência, vamos dizer assim, poética. A liberdade que a ficção teve na mudança de todo o contexto e parte disso também tinha a ver com a segurança. Serviu como uma forma de tirar ali a referência original, porque quando tudo começa, quando começa a ser filmado tudo, ela ainda era viva e estava fora do programa de proteção à testemunha. Então era uma forma de tirar qualquer referência que indicasse quem ela era e a origem.
“Você imagina o quanto ela sofreu: uma mulher sozinha no Rio de Janeiro, na década de 60. Então tudo isso forjou quem ela era, naquela coragem e força.”
O filme mostra o dilema profissional: publicar ou não publicar a reportagem sobre as denúncias feitas por dona Joana? Quando se sentiu seguro em publicá-la e quais outros cuidados tomou para preservar a fonte e também se preservar?
Ali a questão da segurança era fundamental. A parte da segurança de um jornalista são os cuidados normais que a gente já toma no nosso dia a dia. Não tem muito como fugir disso. Mas a parte dela era, de fato, a entrada no programa de proteção à testemunha. Foi o que possibilitou e viabilizou a publicação da reportagem. Só que isso, independente de publicação de reportagem ou não, a questão de segurança dela era imprescindível, porque ela já estava muito tempo filmando e não dava para garantir que ninguém sabia de nada ali, até porque ela se colocava em risco muitas vezes.
Como se sentiu ao ver no cinema uma história inspirada nas reportagens e no livro que escreveu sobre dona Joana?
Ao ver a primeira vez, eu me emocionei muito, eu chorei, porque você se vê representado ali, vê a sua história. Você vê a sua história eternizada numa interpretação da Fernanda Montenegro, a maior atriz que a gente tem. E me ver representado pelo Alan Rocha, o cara que pegou tudo ali da minha essência mesmo, é incrível, é indescritível. É uma emoção única. Sou muito grato ao que estou vivendo.
Como avalia o filme?
O filme é um filme que tem muitas camadas, que mostra a solidão dela, mostra tudo que ela tem, que ela viveu ao longo da sua vida. Em muitos momentos, aquilo dali passava a ser a sua principal interação com o mundo exterior. Fala também de amor. É uma história de amor dela com os novos amigos: o Marcinho (Thawan Lucas), a Bibiana (Linn da Quebrada), e depois é a relação de amor que ela estabelece com o Flávio Godoy (Fábio Gusmão na vida real, interpretado por Alan Rocha). Então eu fiquei muito emocionado! Acho que o filme tem uma interpretação da dona Fernanda muito avassaladora, com tudo que era a dona Joana. Você ri, você chora, você vive ali com ela. E da mesma forma o Flávio Godoy, com a emoção que ele coloca ali, o Alan Rocha. Então é um filme que emociona as pessoas, não é à toa que as pessoas têm, pelo Brasil inteiro, aplaudido o filme sempre ao fim da sessão.
Qual o maior ensinamento você tira de toda essa história vivida por dona Joana e que você tornou pública?
O maior ensinamento que a gente tem é acreditar na nossa verdade, naquilo que a gente considera justo; é travar o bom combate, que foi o que a dona Joana fez com muita força, muita energia, muita garra, muita resiliência. E da mesma forma eu ali, de ter conseguido passar pela história e não abandoná-la. E isso também demandou muita energia, muita resiliência, muita paciência, muita fé em que aquilo era o certo, o correto a se fazer. Tive a oportunidade de ter um encontro com ela e levei isso sempre com muita seriedade, com muito amor e muita fé mesmo, de que aquilo deveria ser feito da forma como foi feito, para que ela conseguisse ter aquela vitória que ela teve ao fim. Porque para mim é uma vitória, né? Você conseguir fazer algo que leva mais de 30 pessoas para a cadeia é muito forte.
Recentemente, o Governo de Alagoas anunciou que as forças policiais do Estado vão utilizar câmeras corporais. Você é favor ou contra o uso desses equipamentos?
Eu sou a favor do uso das câmeras corporais, porque toda atividade do Estado, e não só da polícia, precisa facilitar o acesso ao monitoramento e fiscalização. E ao mesmo tempo, isso ajuda os bons policiais que querem cumprir com o seu dever corretamente, a ter tudo aquilo na sua rotina registrado. Então para quem trabalha correto vai ser sempre o melhor, não tenho dúvida. E isso é um bem para a sociedade, não é algo que é ruim.
Como adquirir o livro Dona Vitória Joana da Paz?
O livro está nas livrarias por todo o Brasil, mas você pode comprar online também, nas livrarias online, na própria Amazon, que está com uma promoção boa lá.
Suas considerações finais:
Minhas considerações finais é convocar as pessoas para irem ao cinema, assistir ao filme. É um filme que fala sobre a nossa realidade. É uma história que aconteceu há 20 anos, mas está muito atual. É uma história que comoveu pessoas pelo mundo inteiro, quando foi divulgada pela primeira vez. E a ficção traz a possibilidade das pessoas irem o mais fundo possível naquele imaginário, na construção daquela mulher. Então vão ao cinema, assistam e depois leiam o livro também. O livro vai dar mais camadas ainda e, na verdade, as duas formas se complementam.
Sobre o autor
Fábio Gusmão é jornalista há quase 30 anos. Cobrindo segurança pública no jornal Extra durante dez anos, conquistou prêmios importantes como o Esso de Reportagem, Embratel de Reportagem, Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, o 22o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo e uma menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog.
Foi editor da Editoria Rio dos jornais O Globo e Extra, onde atualmente é editor-executivo. É coautor do livro Pedofilia na Igreja: Um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil (editora Máquina de Livros, 2023).
Veja o trailer oficial do filme: