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“Pela primeira vez, vivi um parto acessível, fui ouvida e respeitada”

Agência Alagoas publica reportagem especial sobre o programa Parto Acessível; confira!
Aline Bastos foi atendida pelo programa Parto Acessível, iniciativa do Governo do Estado que promove acessibilidade durante toda a gravidez (fotos: Thiago Sampaio / vídeo: Lucas Batista)

“Quebrando o silêncio: mães surdas são assistidas por intérpretes de Libras durante o parto”. Com esse título, a Agência Alagoas publicou reportagem especial sobre o programa Parto Acessível, desenvolvido pela Secretaria de Estado da Cidadania e da Pessoa com Deficiência (Secdef).

Com um texto sensível, a reportagem da jornalista Ana Beatriz Rodrigues conta a história de Aline Bastos. Ela e o marido são surdos e tiveram o auxílio de três intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras) durante o parto que trouxe ao mundo o pequeno Gael Luccas.

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Ana Beatriz contou como foi a experiência e a emoção de acompanhar o parto e reportar essa história cheia de amor, respeito e inclusão.

“O jornalismo tem o papel de dar voz às pessoas; nós somos a ponte, quem leva essas histórias para os outros. Produzir essa pauta me fez refletir sobre quantas pessoas acabam vivendo no silêncio, como a própria reportagem diz: em um filme sem som e sem legenda. Temos a missão de divulgar boas ações e também de promover a reflexão: precisamos ouvir a todos igualmente e garantir que a acessibilidade seja rotineira”, disse a repórter.

As fotos são do repórter fotográfico Thiago Sampaio, com arte de Ronaldo Betta e vídeo de Lucas Batista.

Confira a reportagem na íntegra:

Imagine uma mãe vivendo um dos momentos mais especiais de sua vida: o nascimento do seu filho. No entanto, durante o parto, ninguém fala com ela, nem mesmo para informar sobre a saúde do bebê, como se a mãe fosse invisível para a equipe médica.

O parto é marcado pelo silêncio e a sensação de estar à margem, como alguém assistindo a um filme sem som e sem legendas. A alagoana Aline Bastos viveu essa experiência não apenas uma, mas duas vezes.

Em um momento que deveria ser de pura emoção, havia uma barreira: a comunicação. Aline é surda, e a equipe médica simplesmente não sabia como falar com ela na hora do parto.

O que começou com o triste relato de uma mãe que não se sentiu presente no momento do nascimento dos filhos ganhou um novo significado. Graças às intérpretes de Libras do programa Parto Acessível, desenvolvido pela Secretaria de Estado da Cidadania e da Pessoa com Deficiência (Secdef), o nascimento de seu terceiro filho, Gael Luccas, trouxe emoção em dose dupla.

Aline Bastos deu entrada no Hospital da Mulher no dia 13 de fevereiro, por volta das 8h30

Pela primeira vez, tanto o pai, que também é surdo, quanto a mãe, puderam se comunicar com a equipe médica e foram ouvidos durante todo o processo, tornando-se protagonistas.

“Na minha primeira gestação, eu falava com as médicas, tentava entender o que estava acontecendo, mas ninguém lembrava de mim. Na minha segunda gestação, com minha sogra ao meu lado, foi exatamente a mesma coisa. Eu me sentia angustiada, perdida, sem saber o que estava acontecendo com meu próprio corpo e com meu bebê.  Era como se eu não estivesse ali. Apesar de ser a mãe, a protagonista daquele momento, eu era ignorada simplesmente por ser surda. Foi muito difícil passar por dois partos sem acompanhamento adequado, sem alguém que pudesse me ajudar a entender cada passo daquele processo tão importante. Só agora, na minha terceira gestação, tive essa grande assistência dos intérpretes. Pela primeira vez, vivi um parto acessível, fui ouvida e respeitada. Antes, sempre existia essa barreira. Agora, finalmente, ela foi quebrada”, disse Aline.

Central

Quem deu voz a Aline foi uma equipe de três intérpretes de Língua Brasileira de Sinais: Samara Carvalho, Patricia Lira e Jeniffer Kessia. Elas fazem parte da Central de Intérpretes de Libras (CIL), programa que disponibiliza profissionais fluentes em Libras para pessoas surdas que utilizam os serviços públicos. Fechada havia muitos anos, a CIL foi reaberta em 2023, e já registrou mais de 1.300 chamadas.

Atualmente, sete pessoas fazem parte da CIL, incluindo um surdo, que atua em conjunto com os intérpretes ouvintes, facilitando a comunicação entre pessoas surdas, principalmente aquelas com menor fluência na Libras.

Além disso, a equipe da central tem capacidade de explicar expressões técnicas de forma precisa, garantindo que a mãe tenha total entendimento de termos médicos, por exemplo.

O Parto Acessível é uma iniciativa pioneira do Estado de Alagoas, e representa um marco na promoção da inclusão e da humanização do atendimento aos futuros pais e mães surdos.

Programa disponibiliza profissionais fluentes em Libras para pessoas surdas que utilizam os serviços públicos

“Sabemos que a chegada de um filho é um momento único e especial na vida de qualquer família. No entanto, para pais e mães surdos, a falta de comunicação acessível durante o parto pode gerar sentimentos de insegurança, medo e até mesmo exclusão. Quando falamos de maternidade, estamos falando sobre direitos”, explicou a secretária de Estado da Cidadania e da Pessoa com Deficiência, Arabella Mendonça.

Ela conta ainda que o objetivo do programa é eliminar essa barreira, oferecendo um intérprete de Libras para acompanhar o casal durante todo o processo, desde o pré-natal até o pós-parto.

“Esse profissional capacitado garante que a comunicação entre a equipe médica e os pais seja fluida e eficiente, permitindo que eles participem ativamente de todas as decisões e etapas do parto. Acreditamos que a inclusão e a acessibilidade são direitos fundamentais de todos os cidadãos”, disse.

Comunicar-se é uma necessidade básica

Aline Bastos deu entrada no Hospital da Mulher no dia 13 de fevereiro, por volta das 8h30, acompanhada de Luan Silva, seu companheiro.

Samara Carvalho, sua primeira intérprete, já estava no local, aguardando-a na recepção para auxiliá-la na internação na unidade. Ao chegar na triagem, Aline fez um exame de cardiotocografia – que permite escutar os batimentos cardíacos do bebê.

Samara transmitia cada “tum tum” do coração de Gael através de Libras, gesticulando com o punho cerrado no peito e movimentos da boca.

A humanização, expressa em um simples gesto de mostrar a uma mãe surda que seu filho estava bem, chamou a atenção da equipe médica. Chriszelle Lima, enfermeira responsável pela triagem, não escondeu sua felicidade ao poder oferecer um atendimento digno e humanizado para Aline.

“Atendo aqui no HM há quatro anos e já presenciei alguns atendimentos de pessoas surdas. Situações como essa nos fazem refletir sobre quantas vezes já fomos impedidos de oferecer um serviço verdadeiramente respeitoso ou humano. Em nome da equipe, digo que essa experiência – de ter uma intérprete no momento da consulta – nos surpreendeu, e que vamos divulgar esse serviço para que outras mamães surdas também possam ter esse suporte em um momento tão especial”, se emociona Chriszelle.

O gesto vale mais que mil palavras

Se comunicar oralmente é importante, mas tem ações que, em muitos momentos, valem mais que palavras: o toque e o olhar, por exemplo. Eles são linguagens universais que todos podem praticar para gerar empatia e compaixão uns com os outros.

Aline e Luan são tímidos, mas se olhavam o tempo todo na sala de parto. Não havia palavras, mas muita expectativa e amor para a chegada do Gael.

Cada toque necessário no corpo de Aline era previamente comunicado. Antes da aplicação da anestesia, a médica Elisabeth Ferreira explicou que a paciente sentiria uma ‘picada’ seguida de um formigamento na lombar, mas que era normal.

Samara imediatamente repassou a informação em Libras, tranquilizando Aline. Durante a cesárea, Aline se sentiu mal e avisou a intérprete. Prontamente a anestesista administrou o medicamento adequado.

Programa representa um marco na promoção da inclusão e da humanização do atendimento aos futuros pais e mães surdos

Foi então que uma série de perguntas ecoou na mente de todos os presentes. “E se ela não tivesse uma intérprete ao seu lado? Como estaria se sentindo? Como poderia expressar com precisão sua necessidade naquele momento? A gente fica se perguntando. Embora aqui no meu monitoramento esteja tudo sob controle, o paciente pode ter um desconforto. Graças a intérprete ela teve acesso rápido a remédios e ao atendimento, garantindo bem estar durante todo o procedimento, que é direito de todos”, pontuou Elisabeth.

Com lágrimas nos olhos, Aline relembra como foram suas outras experiências dentro da sala de parto.

“Das outras vezes eu não sabia o que ia acontecer. Tudo era comigo, a dor era em mim, mas eu era ignorada pela equipe médica, já que não podia ouvir e eles não sabiam como me avisar das coisas. Dessa vez, com a intérprete, me senti pertencente àquele momento. Esse parto foi diferente de tudo o que eu vivi. Samara me avisou quando ele chorou pela primeira vez e a hora que ele nasceu, 11h50. Nunca mais vou me esquecer disso”, disse Aline em Libras.

“Quando soubemos que contaríamos com a presença da intérprete, ficamos aliviados, pois sabíamos que a comunicação seria eficaz. A surdez não foi um obstáculo para o atendimento, e essa experiência nos mostrou o quanto é essencial que esses profissionais estejam disponíveis. Ficamos muito felizes ao saber que, sempre que um paciente com deficiência auditiva nos procure, podemos acionar os intérpretes para garantir um atendimento adequado e digno”, pontuou a ginecologista-obstetra, Ianara Lemos.

Acessibilidade não é privilégio, é direito

O suporte da intérprete chamou a atenção não só da equipe médica, mas de outros pacientes que estiveram naquela manhã no Hospital da Mulher.

No entanto, o que parecia um certo “luxo” ou “privilégio” para Aline e Luan era, na verdade, um direito garantido por lei. A Constituição Federal de 1988, por meio do Artigo 227, §1º, II, determina que o Estado deve garantir a inclusão e acessibilidade para pessoas com deficiência, incluindo aquelas com surdez.

Uma determinação importante, porque, segundo o IBGE, em 2020, Alagoas tinha mais de 140 mil pessoas surdas ou com deficiência auditiva. Isso significa que histórias como as de Aline não são raras.

Pela primeira vez, tanto o pai, que também é surdo, quanto a mãe, puderam se comunicar com a equipe médica

“Enquanto continuarmos vendo a acessibilidade como um privilégio, e não como algo essencial, estaremos retrocedendo em muitas conquistas, lutas e desafios já superados. Por isso, precisamos continuar lutando para que os surdos tenham cada vez mais espaço e voz. Somos fundamentais em momentos como esse e em tantos outros. A comunidade surda, assim como nós que a acompanhamos, sonha com um futuro em que essas pessoas possam viver plenamente sem que minha presença seja essencial para garantir a comunicação. Mas, enquanto isso não acontece, seguimos quebrando barreiras”, explica a intérprete de libras da CIL, Samara Carvalho.

Censo

Além da Central de Intérprete de Libras, outras ações vêm sendo desenvolvidas para quebrar a barreira da comunicação e promover acessibilidade a todos. Entre elas está o Censo da Pessoa Com Deficiência (PcD), que vai levantar o maior número possível de informações e dados relativos às pessoas com deficiência em Alagoas, servindo como o norte para a promoção de políticas públicas.

Alagoas foi o sexto estado do Brasil a aderir ao Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – o Novo Viver Sem Limite -, que prevê investimento de R$ 6,5 bilhões para garantir dignidade, promoção de direitos e ampliação do acesso das pessoas com deficiência à educação, à cultura e ao emprego.

Atendimento e serviço mais que aprovado

Por onde Samara, Patricia e Kessia andaram, receberam elogios e dúvidas sobre o serviço do Parto Acessível.  Porém, quem mais aprovou o programa foi, sem dúvida nenhuma, Aline, afinal, ela é usuária da CIL há quase um ano.

“Descobri esse serviço dentro da comunidade surda. A partir daí fui pra cartório, posto de saúde, fiz exames sempre com intérprete. O Gael é fruto da grandiosidade desse serviço. Descobri que estava grávida, que era um menino e até a hora que ele nasceu e quando ele começou a chorar pela primeira vez graças a CIL, e em especial, a Samara, que me acompanhou na maior parte do tempo”, disse Aline.

A CIL acompanhou não só Aline, mas também Luan, que no próprio hospital registrou Gael e contou com a ajuda da intérprete Kessia na hora de dizer o nome do bebê: Gael Luccas Bastos da Silva. Tímido e emocionado, ele agradeceu todo o apoio.

“Me senti muito acolhido, vocês estão de parabéns. Vou acioná-los mais vezes; vocês fazem parte da minha história, da história do meu filho”, falou Luan.

“Para mim, estar aqui hoje, neste parto, garantindo acessibilidade para ela, foi incrível. Sinto que foi o ápice da minha carreira como intérprete de Libras, uma experiência extremamente gratificante e única”, agradece Samara.

O nascimento de Gael Luccas não foi apenas um marco na vida de Aline e Luan, mas também um símbolo de como a inclusão pode transformar realidades. Se antes o silêncio e a invisibilidade eram parte da rotina de muitas mães surdas, hoje, com iniciativas como a Central de Intérprete e o Parto Acessível, todos podem viver esse momento com dignidade, segurança e emoção. 

Sobre a Central de Intérprete de Libras (CIL)

Para acionar o serviço da CIL é preciso agendar com antecedência. O acompanhamento pode ser presencial ou virtual.

O interessado deve mandar e-mail para [email protected] ou fazer uma chamada de vídeo para o número (82) 98884-5403.

É possível também agendar presencialmente na CIL, que está funcionando na Escola de Conselhos, na Avenida Professor Santos Ferraz, 321, no bairro do Poço, em Maceió.

Fonte: Agência Alagoas / texto: Ana Beatriz Rodrigues

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