Recém-graduado em psicologia, o professor do Instituto de Computação da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Ig Ibert Bittencourt, 40 anos, tornou-se pesquisador visitante em uma das melhores universidades do mundo: Harvard, nos Estados Unidos.
“A intenção é aumentar as redes de colaboração, aprender cada vez mais e, de alguma forma, trazer isso de volta ao Brasil para continuar trabalhando em prol da educação pública no país”, revela Ig.
Nos Estados Unidos, ele terá a oportunidade de trabalhar com o venezuelano Fernando Reimers, diretor da Iniciativa de Inovação em Educação Global da Universidade de Harvard (Global Education Innovation Initiative).
Reconhecido internacionalmente, Reimers desenvolveu um currículo para educação básica empregado em muitas escolas ao redor do mundo, levando em conta os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.
Educação mais computação
Filho de dois professores de música, o maceioense Ig traz desde o berço o vínculo com a educação. Ainda no ensino médio, destacava-se nas ciências exatas e era chamado para dar aulas aos colegas do Colégio Santíssimo Sacramento, onde estudou a vida toda até entrar no curso de Informática do Centro de Estudos Superiores de Maceió (Cesmac).
Foi no hospital em frente ao Colégio que Ig nasceu em 1982, quarto e último garoto da família que havia chegado a Maceió poucos anos antes, depois de deixar Salvador, na Bahia.
“Eu sempre conversava com a minha mãe sobre o desafio que tinha sido criar quatro filhos. Uma verdadeira escadinha de homens, com essa energia toda que a gente tem”.
Energia que irradiava durante as disputas para usar o único microcomputador da casa.
“Na época, estava surgindo o Windows 3.01, e aí a gente usava MS-DOS. E o que a gente gostava de fazer no computador? Jogar!”
Por ser o mais novo, Ig sempre levava a pior nos desafios envolvendo o equipamento.
“Um desses desafios era exatamente encontrar um jogo novo, salvar em um disquete, e esconder para não deixar os irmãos jogarem”, brinca Ig.
“Mas, curiosamente, o meu irmão mais velho, o Ibsen, toda vez que eu jogava no computador e tirava o disquete, logo depois ele estava jogando o mesmo jogo”.
Ig não se conformava com a cena: “Como assim? Como é que pode? Deve ter alguma coisa que ele faz no computador. E isso começou a atiçar minha curiosidade”.
Como a curiosidade é um dos ingredientes motivadores da descoberta de novos conhecimentos, Ig passou a estudar o manual do sistema operacional (MS-DOS) para encontrar uma resposta.
“Era como se eu quisesse meio que hackear o computador, para fazer com meu irmão o que ele fazia comigo”.
Não demorou muito para o garoto curioso descobrir que os dados do jogo permaneciam armazenados na memória do computador, mesmo que o disquete fosse removido.
“Isso começou a despertar meu interesse pela área de computação, pela tecnologia”. Um interesse que só cresceu dali em diante.
Três sonhos, uma escolha
“Eu sempre tive muitos interesses. Na verdade, quando eu era criança, tinha três sonhos: um deles era ser piloto de avião de caça.”
Devido às limitações visuais ― os óculos que Ig usa não negam ― logo o menino enxergou que era inviável seguir por esse caminho. Então, prosseguiu com outro sonho, o de ser jogador de futebol.
A paixão pelo esporte também veio do berço. O pai o estimulou a experimentar as mais diversas modalidades esportivas desde a infância, uma estratégia para evitar que o menino sofresse por causa de alguma limitação respiratória. Um receio que surgiu depois que Ig, ao completar um ano de idade, foi diagnosticado com um derrame pleural, que é um acúmulo excessivo de líquido no pulmão.
Os médicos conseguiram salvar a vida do menino, mas já alertaram aos pais que, apesar de ter uma vida normal pela frente, Ig provavelmente apresentaria dificuldades respiratórias.
A estratégia paterna deu tão certo que o garoto, já na adolescência, começou a se destacar e se projetou como jogador volante no Agrimaq. Aos 16 anos, recebeu um convite para atuar no Corinthians e chegou a morar no Parque São Jorge, na capital paulista, durante alguns meses.
Acontece que os custos do ensino médio particular em São Paulo eram muito elevados e Ig precisou retornar a Maceió, mas com a perspectiva de voltar a jogar em um grande time.
Porém, depois da primeira fase do vestibular, já no fim do ensino médio, os convites que recebia para atuar em outros times não o agradavam. Então, percebeu que era hora de tomar uma decisão: se quisesse continuar com os estudos, teria que abandonar o futebol.
“Lembro-me que chorei muito no último ano do ensino médio porque estava abrindo mão de um sonho. Foi uma decisão difícil, mas muito bem pensada”, conta o ex-jogador. Hoje, sabe que escolheu o melhor caminho. Poucos amigos que permaneceram na carreira de jogador conseguiram ser bem-sucedidos.
A decisão fez Ig mergulhar no terceiro sonho: o de se tornar cientista. Mas, apesar de estudar muito para o vestibular, ele não conseguiu ser aprovado no curso de computação da Ufal, uma decepção que abalou a autoestima do jovem.
“Eu passei a achar que não tinha capacidade e que precisava me dedicar muito mais do que as outras pessoas para conquistar algo.” Inspirado na garra, persistência e resiliência da mãe, Ig não desistiu.
Nasce um empreendedor
Mergulhado nos livros e focado no aprendizado, durante a graduação, Ig começou a desenvolver softwares para empresas. Enquanto ele podia estudar e praticar o que aprendia, via um dos irmãos, estudante da área de direito, em uma situação bem diferente.
O rapaz precisava estagiar voluntariamente em escritórios de advocacia para ter alguma experiência prática antes de se formar. Aquela limitação fez surgir a primeira ideia empreendedora de Ig: “E se usássemos a computação para simular um tribunal de júri?”
Era 2001, e a proposta de criar os tais simuladores estudantis (Simes) soava muito promissora. Ig convenceu mais dois amigos da turma de computação a se juntarem à empreitada: Rafael de Amorim Silva e Dalgoberto Miquilino Pinho Júnior.
Nasceu assim a Horizontes, empresa que logo chamou a atenção de uma incubadora de projetos de Pernambuco. O primeiro passo, a apresentação do plano de negócios, foi um sucesso. O próximo passo para que a incubadora pudesse liberar R$ 250 mil ao projeto parecia trivial: mostrar um protótipo dos simuladores estudantis.
“A gente tentou de todas as formas fazer o protótipo. Você não tem ideia de como a gente tentou, viramos noites, estudando, programando, chegamos a nos reunir com diferentes especialistas, mas era muito complexo e a gente não conseguiu”.
Era o fim da Horizontes, mas não do empreendedor. “Isto não saía da minha cabeça: não vai ser agora, mas, no futuro, a gente vai impactar a educação”, conta Ig.
Quando foi aprovado no mestrado na Ufal, em 2005, a primeira coisa que ele fez foi mostrar o plano de negócios dos simuladores estudantis para seu orientador, o professor Evandro de Barros Costa.
“Professor, isso aqui é o que eu quero fazer no mestrado”. Evandro leu a proposta e começou a fornecer artigos para o pós-graduando ler. “Só que eu vi que era muito difícil. Puxa, não dá para fazer isso no mestrado, vou fazer doutorado”.
Ig finalizou o mestrado em 2006 e, no ano seguinte, ingressou no doutorado, também sob orientação do professor Evandro. Deparou-se novamente com o mesmo desafio.
“Isso é realmente muito difícil. Não é uma boa arriscar o meu doutorado e terminar não virando doutor.” O doutorado terminou em 2009, no entanto, a ideia não morreu.
“Outro dia veio à minha cabeça: 50 anos, talvez seja quando eu consiga fazer.” Se depender da garra, persistência e resiliência de Ig, talvez nem demore tanto.
Surgem novos sonhos
Em 2006, durante o mestrado, Ig conheceu outro orientando do professor Evandro: Alan Pedro da Silva.
“A gente ficava de madrugada, só nós dois basicamente, programando e escrevendo artigos para submeter nos eventos. Ali, a gente já viu que queria criar algo juntos”.
No ano seguinte, Ig viajou para Los Angeles, nos Estados Unidos, e participou da maior conferência internacional de inteligência artificial aplicada à educação, a International Conference on Artificial Intelligence in Education (AIED).
“Eu estava em um evento social lá, em um barco, conversando com dois japoneses, em inglês. Um dos japoneses perguntou: você é de onde? Eu disse: sou do Brasil. E aí o outro japonês falou: eu sou brasileiro.” E assim se deu o primeiro encontro entre Ig e Seiji Isotani, que fazia doutorado na Universidade de Osaka, no Japão.
“Por que só a gente estava ali? Começamos a discutir sobre a necessidade de trabalhar mais fortemente a pesquisa nacional na área de tecnologias educacionais. E a gente viu que nosso pensamento estava alinhado em relação à proposta de transformar a educação brasileira. Então, depois daquele evento, decidimos começar a trabalhar juntos”, recorda-se o maceioense.
Dali em diante, o sonho de impactar positivamente a educação brasileira foi, aos poucos, ganhando vida. Em outubro de 2011, quando Alan e Ig já eram professores da Ufal e Seiji professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, eles se uniram e criaram o Núcleo de Excelência em Empreendedorismo Social (NEES).
Vinculado ao Instituto de Computação da Ufal, o núcleo tinha como proposta inicial melhorar a educação no país por meio da criação de empresas sociais, ancoradas na pesquisa científica. Essas empresas, ao invés de trabalharem para maximizar os lucros, atuariam para maximizar o impacto social, formando novos líderes.
É nesse escopo que surge a startup MeuTutor, também em 2011. “Em 2012, a gente lançou o primeiro produto, a plataforma MeuTutor, naquele mesmo ano, chegamos a ter mais de 30 mil alunos na plataforma, uma coisa impressionante.”
Em 2014, a MeuTutor ganhou o primeiro lugar na Olimpíada USP de Inovação, na categoria empresa nascente e, ainda, o prêmio Alagoano Empreendedor Inovador.
A trajetória da empresa foi analisada em profundidade pelo irmão mais velho de Ig ― o mesmo que conseguia recuperar os jogos escondidos no computador ―, Ibsen Mateus Bittencourt, que também é professor da Ufal.
O relato está disponível em sua tese de doutorado “Competências em negócios sociais: análise de narrativas das experiências de um grupo de empreendedores do Estado de Alagoas”, que conquistou o segundo lugar na categoria Melhor Tese de Doutorado do Brasil em Finanças Sociais e Negócios de Impacto, em 2018, em uma premiação realizada pelo Instituto Cidadania Empresarial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Revés
Porém, como acontece na maioria das histórias de vida de empreendedores, o revés é uma constante. Apesar de tentarem levar as soluções criadas pela MeuTutor para as escolas públicas brasileiras, não aconteceu da forma como eles queriam.
“No fim das contas, uma parte da empresa terminou sendo adquirida por um grande grupo privado, que disponibilizou a plataforma para milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de estudantes do país, Aí eu comecei a ver que, no fim das contas, a MeuTutor tinha virado parte do problema educacional brasileiro. Enquanto tentávamos melhorar a educação pública de qualidade, desenvolvemos uma super tecnologia com impactos impressionantes na aprendizagem e que foi usada no setor privado. Resultado: contribuímos para aumentar a desigualdade educacional.”
Tal como em grande parte dessas histórias, uma lição importante foi aprendida: “Descobrimos que não dava para prosseguir criando empresas. Decidimos trabalhar diretamente com o governo federal a partir de 2017. Como somos vinculados a uma universidade federal pública, o NEES é parte do governo. Assim, nossos projetos de pesquisa e inovação, realizados em parceria com o Ministério da Educação, começaram a alcançar as escolas públicas de todo o Brasil.”
Com o passar dos anos, o amadurecimento dos pesquisadores e as várias experiências adquiridas pelo grupo, o NEES foi ampliando cada vez mais seu escopo de atuação.
Em março de 2022, durante um workshop de planejamento estratégico, o Núcleo sintetizou seu propósito em uma frase: equidade educacional para a transformação social. Um slogan capaz de traduzir em palavras a árvore frutífera que germinou a partir de uma pequena semente cultivada em 2011.
Surgem novos desafios
Desde que começou a jornada pela computação, Ig atua na área de tecnologias educacionais. Nesse contexto, seu desafio sempre foi compreender como as pessoas aprendem e como ampliar as oportunidades e a qualidade da aprendizagem.
“Que teorias existem sobre aprendizagem? Quem são os teóricos? A formação em computação não fornece o embasamento necessário para você entender o que acontece em relação à aprendizagem. Isso atiçava minha curiosidade, porque eu sempre quis compreender as coisas. Então, queria conhecer em profundidade as teorias de aprendizagem, mas eu enfrentava uma barreira teórica. Aí eu decidi: para melhorar minha forma de fazer pesquisa e ter produções mais relevantes, vou fazer uma graduação em psicologia”.
Era 2016. Foi preciso muita garra para mergulhar de novo nos conteúdos das disciplinas da educação básica e estudar para conquistar uma boa pontuação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A recompensa veio no ano seguinte, com a conquista de uma vaga na graduação em Psicologia da Ufal.
Chega 2017. Ig torna-se pai no mesmo ano em que voltou a ser um calouro universitário, na mesma Universidade em que já era professor. Davi Gabriel nasceu prematuro e precisou ficar na Unidade de Terapia Intensiva e tomar medicamentos ototóxicos, ou seja, potencialmente danosos para as fibras nervosas associadas à audição. Como consequência, desenvolveu perda auditiva bilateral.
“Eu me lembro de que, na época, quando soube da perda auditiva, a primeira coisa que me veio à cabeça foi: desenvolvimento da linguagem. Para desenvolver a linguagem, você precisa ouvir. Se você não escuta, ou escuta pouco, você pode ter dificuldades. Como eu estava na área acadêmica, já sabia os efeitos danosos de um processo inadequado de desenvolvimento da linguagem. Então, comecei a estudar loucamente e ir atrás do que a gente poderia fazer. No fim das contas, ele fez estimulação precoce desde os três meses, e desde os seis meses usa aparelho auditivo. Hoje, está desenvolvendo habilidades de linguagem e fala normalmente”.
A experiência pessoal trouxe impactos importantes para a carreira acadêmica.
“Eu sempre valorizei as evidências, sempre estiveram presentes na minha pesquisa. Mas quando nasce o meu filho, isso ganha outro significado. Porque eu passei a saber que uma evidência mal construída, mal coletada, pode levar um profissional a tomar uma decisão que vai impactar negativamente a vida de uma outra pessoa”, explica Ig.
“Por exemplo, vamos supor que existisse uma evidência de que a estimulação auditiva só precisaria acontecer a partir dos seis meses de vida da criança. Isso poderia levar a uma decisão de fazer com que meu filho não tivesse estimulação precoce aos três meses”.
Desde então, Ig passou a ser mais rigoroso em relação à necessidade de evidências bem fundamentadas para embasar qualquer decisão. Chegou a escrever e publicar até um artigo sobre isso: Informática na educação baseada em evidências: um manifesto.
Com Davi, Ig passou a ter um novo olhar sobre a necessidade de promover iniciativas para a inclusão e a equidade educacional.
“Quando construímos uma política pública, precisamos de soluções que ajudem todos, inclusive crianças como meu filho, que vão enfrentar algumas limitações”.
É como se Davi tivesse possibilitado que Ig ampliasse sua percepção também no campo da pesquisa científica, que passa a ganhar uma dose adicional de empatia.
A lição de Davi soma-se ao que Ig aprendeu quando percorreu os 800 quilômetros do Caminho de Santiago, saindo da França e chegando ao outro lado da Espanha.
“O que eu descobri fazendo o Caminho de Santiago, e levo para minha vida, é que o percurso, o caminhar, é muito mais importante do que chegar. A mensagem é: percorra o caminho com ética e com pureza no coração. Chegar não é algo que cabe à gente. Tem muita coisa que não controlamos. Agora, um percurso puro, honesto, sincero, com garra, com persistência, é o que a gente consegue controlar”.
É certo que a caminhada por Harvard trará muitos outros aprendizados, que não vão impactar apenas a vida de Ig, mas também a ciência que ele faz.
Com texto de Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do NEES