Benedito dos Santos, quando criança, sempre foi atento aos sons e cores da cultura alagoana. E este encantamento transformou o menino Benedito no adulto Rás Gonguila, cujo Clarim ecoava pelas ruas, becos e avenidas de Maceió avisando que o Carnaval havia chegado.
Virou Rás em uma referência a uma origem nobre etíope. Na história, consta também a possível passagem de seus antecedentes, nobres africanos, pela República dos Palmares. Estes antecessores teriam fugido ao ataque dos “paulistas” e assim proporcionaram a sobrevivência da linhagem real que teve continuidade com Gonguila.
Engraxate e carnavalesco, ele foi fundador do bloco Cavaleiro dos Montes, agremiação carnavalesca que fez história em Alagoas e que será cantada pela Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis do Rio de Janeiro, no Carnaval de 2024.
Poucos são os registros sobre o “Rei do Carnaval”, como era conhecido. A história de Rás Gonguila é contada por amigos, por conhecidos e por sua extensa família que conta com sete filhos, entre os de sangue e de coração.
Dona Maria de Fátima dos Santos, de 66 anos, que conviveu de perto com o pai, descreveu um pouco do homem de um metro e noventa, que diariamente usava camisas de manga comprida, na cor branca, dobrada na altura do cotovelo e que era visto pela família e pessoas próximas como um sábio conselheiro.
“Ele era analfabeto, mas muito esclarecido e sábio. Nunca bebeu, nunca fumou e também não tinha comportamento agressivo com ninguém. Nunca levantou a mão para um filho. Pra mim ele era um homem muito inteligente. Ele era visto como um conselheiro para as pessoas próximas e até para outras que a gente nem conhecia. Muita gente o procurava para conversar”, disse Maria de Fátima.
Apesar de ser analfabeto, Maria conta que Gonguila sempre incentivava os estudos dos filhos para que pudessem ter uma vida melhor. “Fazia questão que a gente estudasse e se dedicasse na escola. Era um homem de uma dignidade sem igual”.
Rás Gonguila conduzia o Cavaleiro dos Montes com amor e dedicação. O capricho e o zelo eram percebidos desde o estandarte que era cuidadosamente bordado à mão.
“O bloco chegou a sair do Farol, da antiga Rua São Paulo, da Rua Formosa e também da Ponta Grossa. Passava por vários bairros até chegar à Rua do Comércio, que era o ponto final. Lembrar tudo isso me faz muito bem, pois pra mim, ele era um mágico. Antes do bloco percorrer as ruas da cidade, ele tocava o clarim nas esquinas e as pessoas saiam de suas casas, das ruas e dos becos para acompanhar o bloco. Era um anúncio e hoje vejo a beleza que existia em tudo isso”, disse a filha.
Liene Marques Nascimento, que hoje tem 78 anos, é sobrinha de Lina Marques, uma das esposas com quem Gonguila conviveu por muitos anos, na antiga Rua São Paulo, próximo da tradicional Praça Moleque Namorador. Liene contou que sua tia participava ativamente das atividades de preparação do bloco e chegava a fazer parte do processo de construção das fantasias, que traziam cor e vida para os festejos.
“Ela também fazia jantar para os músicos. Era um bloco que mexia com a cidade toda. O Carnaval para eles era uma festa sagrada”, disse.
A sua atuação carnavalesca era tão imponente e importante que, a partir de 1936, quando o tradicional Clube Fênix Alagoana inaugurou sua nova sede, na Avenida da Paz, passou a ser contratado para recepcionar os sócios na entrada dos seus salões. Gonguila não promovia apenas festas carnavalescas; virou liderança e era procurado por políticos em busca de apoio eleitoral.
Com uma relação próxima de autoridades, se fazia presente em boa parte dos eventos partidários da cidade, mas nunca chegou a ser candidato.
“Por vezes participei junto com meu pai de vários eventos políticos e inaugurações. Ele era muito próximo de Arnon de Mello. Estava sempre nos palanques. Hoje vejo o quanto de orgulho que ele tinha de mim, por sempre estar junto dele”, recordou Maria de Fátima.
Manduca Leão, que era dono da Usina Utinga Leão, por anos foi próximo de Gonguila.
“Meu pai e ele eram muito próximos, foi até padrinho do meu irmão. Ele também tinha muito contato com o governador da época, Lamenha Filho”, falou.
Os amores de Rás Gonguila
Sem uma residência fixa, Benedito dos Santos, que trabalhava nas proximidades do antigo Bar do Chopp, no Centro, administrava a sua vida amorosa com várias mulheres e não escondia isso de ninguém.
“As mulheres nunca sabiam em que casa ele estava, se estava no Farol, na Ponta Grossa ou em outro bairro. Tinha roupa dele em todas as casas. Ele levava a gente para casa das outras mulheres e como a gente não presenciava beijo, não entendíamos quem eram elas de fato”, relembra seu filho Benedito dos Santos Filho, que atualmente tem 60 anos, e trabalha na Fundação Municipal de Ação Cultural de Maceió (Fmac).
Os filhos lembram que por vezes suas esposas se encontravam na cidade, principalmente quando se dirigiam ao Mercado da Produção. “Lembro-me que mamãe levava a gente para fazer feira e algumas vezes ela encontrou as outras mulheres do meu pai lá. Era briga na certa”.
Sobre as mulheres com quem Rás Gonguila se relacionava e as brigas, Liene, que é sobrinha de uma delas, contou um pouco das histórias que ouvia quando criança.
“Minha tia contava que chegava à Rua das Árvores e encontrava-o descendo do ônibus com uma sacola de pão para outra mulher e ela brigava com ele, discutia e assim seguiam uma vida”. Sua tia, que não teve filhos com Benedito, acabou falecendo em 1987.
Homenagem
Questionadas sobre a parte histórica do bloco, que marcou gerações na capital, elas explicaram que parte dos estandartes foram preservados e seguem em exposição no Museu Théo Brandão.
“Eu me questionava por qual motivo ele nunca tinha sido homenageado, diante de tudo o que ele representava”, comentou Maria de Fátima. E foi em uma ligação inesperada que essa homenagem veio.
“Uma colega me ligou no Dia das Mães me desejando parabéns e eu achei que era por conta da data festiva, mas não era, foi daí que ela disse que ele seria o homenageado da Beija-Flor. Foi um susto e uma alegria muito grande. Passei mal, eu precisei chorar e gritar para ficar bem”, lembrou Fátima.
“Eu sabia que eu não iria sair desse planeta sem ver o nome do meu pai ter o merecimento das horas, dos dias e dos anos que ele se dedicou ao Carnaval. Eu tinha certeza disso. Eu fiquei muito feliz. Só de lembrar fico toda arrepiada. Vou sair desse planeta sabendo que meu pai teve a homenagem que merecia”, disse.
Confira o samba-enredo da Beija-Flor “Um delírio de Carnaval na Maceió de Rás Gonguila”.
A Morte
No dia 21 de dezembro de 1968, um dia comum de trabalho em sua barraca no Centro, Benedito da Silva passou mal, foi levado para o Pronto Socorro, mas acabou morrendo no local. De acordo com médicos que o atenderam na época, ele foi vítima de um infarto fulminante.
O corpo do Rei do Carnaval maceioense foi enterrado no Cemitério São José, no Trapiche da Barra. Após seu falecimento, o bloco continuou a existir e manteve o frevo nas ruas da capital por muitos anos, conquistando em sua trajetória 23 títulos máximos.
Fonte: Secom Maceió / texto: Daniel Paulino e Sarah Mendes